quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A propósito de despedidas laborais...

"Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.

Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse circunstanciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo – tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.

Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria – porque a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria – porque de outro me haveria de vestir?

Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para outros invisível. Para mim chama-se realmente Vasques, e é um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com uma justiça que falta a muitos grandes génios e a muitas maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros será a vaidade, a ânsia de maior riqueza, a glória, a imortalidade… Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstractos do mundo.

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios com todo o Estado: «Você é explorado, Soares.» Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível.

Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.

E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa alheia, escritório amplo, da Rua dos Douradores. Achego-me à minha secretária como a um baluarte contra a vida. Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar – ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

12 comentários:

Michelle Dubois disse...

Faço um apelo a todos os contribuintes deste blogue: será que podem incluir um link para uma versão resumida dos comentários com mais de 500 caracteres (incluindo espaços)?

Alferes disse...

Não li o texto por ser estupidamente grande! qt à limitaçao de caracteres, ajudava mt se as pessoas nao pusessem a letra das musicas q postam, por exemplo, ou entao basta tb limitar a Tatiana... os outros contribuintes costumam ter post de tamanho aceitavel!

José Lopes disse...

Vocês são míopes...

Vejam os posts da Tess com letras das músicas que escolhe...

Michelle,

Gostava de saber como pretendes resumir um texto extraído do Livro do Desassossego ou de outro livro qualquer... Fizeste-me lembrar os miúdos que, tendo de ler Os Maias, optavam pelos resumos...

Quanto ao texto, todos têm tempo de sobra para coisas inúteis, por isso contava que quisessem, caso não conheçam o livro em causa, ter o prazer decorrente da respectiva leitura... Seja como for, têm sempre uma opção: não ler...

Peço, por fim, desculpa por tentar incluir alguma cultura neste blog.

José Lopes disse...

Cometi um erro: só houve um míope, que foi o Alferes.

Pérola disse...

Afinal são dois míopes...

Alferes disse...

Dei uma resposta tão curta e mesmo assim foi complicada!!!

Se lerem, mas mesmo ler, do tipo juntar as letras para formar silabas, que formam palavras, que formam frases (ect.) conseguem ver que eu não só fiz referência à letras das músicas escritas no blog, como diss que não li pq o texto era grande e não por qualquer problema ocular sugerido por alguém!!!

José Lopes disse...

Alferes,

Sugeri seres míope não por não teres lido o texto, mas sim por só falares de mim sobre a extensão dos comentários. Sim, as letras também englobam a Tess, mas penso que Tatiana só me engloba a mim... :)

P.S.: Tenho pena que os comentários ao post sejam apenas sobre coisas acessórias...

Alferes disse...

Eu não li, mas para ngm comentar o conteúdo começo a desconfiar que poucos o leram e desses poucos, menos ainda o acharam interessante ao ponto de comentarem... O que, do meu ponto de vista corrobora a minha opinião!!!

José Lopes disse...

Alferes,

"As opiniões são como as vaginas; cada uma tem a sua e quando quer dá-la, dá-la"

Rute Remédios

Sei que houve quem tivesse lido, mas não estava à espera que comentassem. Apenas lamento que haja quem o faça para considerar que uma das obras mais geniais da literatura portuguesa seja "desinteressante"... Esta opinião, de que o livro é genial e marcante, não é apenas minha, mas sim também de inúmeros escritores...

Tess disse...

Tati, eu gostei muito de ler o excerto que seleccionaste.

Quem não tem tempo ou vontade de ler, escusa de o fazer...afinal de contas, é vulgar as pessoas comentarem aquilo que não viram, não ouviram ou não leram - veja-se, por exemplo, a polémica recente com o livro do Saramago ou então, os milhares de comentários no Publico online que não têm qualquer relação com as notícias publicadas.

Quem não quer ler, escusa de ficar preocupado - há que manter a distribuição gaussiana..uns ficam na média, outros nem por isso...

Quanto às canções citadas,prometo corrigir o erro. Para a próxima,além das letras, farei um esforço para incluir também as pautas.


From Tess, with love


P.S."Dêem-me de beber, que não tenho sede!"
Álvaro de Campos


http://pt.wikisource.org/wiki/Bicarbonato_de_Soda

Justiceira Dissidente disse...

Sem me alongar em demasia aqui fica o meu comentário: gostei :)

JD

José Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.